terça-feira, 31 de outubro de 2006

Chove Chuva

Adoro a chuva, gosto da sensação que sinto quando chove, gosto mais ainda do cheiro de chuva. Me lembro de ouvir música quando chovia. É uma terapia de regressão recordar as caudalosas chuvas que vivi em minha infância, um magnetismo me puxava ao seu encontro. Recordo o pequeno terraço na casa da minha avó, eu recostada no parapeito gritando encantada para o cenário, depois voltando o olhar pidão para minha mãe numa espera longa e ávida por um aceno positivo. O espetáculo digno de nota me abraçava. O vento uivava como um lobo soprando meus cabelos e molhando meu rosto com os pingos da chuva que eu lambia, adentrava em mim numa troca perfeita e quase me levantava de tanta força. Eu pisava as poças d'agua ao encontro da enxurrada e descia na avalanche cor de barro transformada em córrego, nadava e boiava mais de cem metros dentro da correnteza suja; mas meu deleite era lei. Por vezes as gotas doía nas minhas costas, mesmo assim era sensacional sentí-las tentando desviar-me delas, e a liberdade se fazia. Corria na chuva, e cantava e cantava. Ficava leve. E quando minha avó não me deixava tomar banho de chuva, eu tristonha, ainda assim, não abandonava o filme. Admirava e contemplava o cair das gotas da torrente, os pingos tortos pelo vento que soprava, a sonoridade da chuva no telhado, a paisagem completa. É escandalosamente mágica a sensação que a chuva exercia e até hoje causa em mim! Adoro apreciar o chuvisco, as gotículas descendo na janela, os pingos grossos caírem das folhas afogando a sede do solo. É fascinante acompanhar a água deslizando sobre o caule das árvores prometendo boa colheita. Todavia os relâmpagos me encantavam e os trovões me acuavam mas mesmo temendo o ensurdecer dos trovões, e quanto mais o barulho dos trovões me limitava, mais me aconchegava o cantar da chuva ao transar com o vento. É uma espécie de assovio, um coro de promessas na esperança de dias melhores, de um amanhecer ensolarado. Nada como andar na chuva pisando na areia, nada melhor que sublimar o céu em tons de cinza chumbo clareados por raios poderosos, olhar as palmeiras num balé sincronizado, as folhas das árvores dançando ao cair, as saias das bananeiras esvoaçantes. A chuva controla com sua força a natureza, tem um sentido de otimismo, de fecundidade, de se opor à seca. O dia nublado e chuvoso rega as plantas e contraponta o sol que depois nasce para alimentá-las de luz; um não existe sem o outro. Algo como recomeçar o novo ciclo. A chuva que traz o verde, os frutos, a renovação. E ao voltar no túnel do tempo vejo a cena, em cor sépia, eu, esquelética, só de calcinha pulando saltitante na chuva, minha avó Nenem na cozinha fazendo doce de leite, de banana, de cajú e biscoitos efes-e-erres, o gato Chano no pé da mesa, o cachorro Rex dormindo no alpendre, sinto o cheiro do café fresquinho, ouço o som da xícara no pires, e as vozes das minhas tias alvoroçadas conversando e ouvindo uma espécie de ópera, Elvis e outras canções, minha querida tia Didi lendo deitada na cadeira de espaguete azul, meu avô na rede tirando uma sesta e, naquele momento todos definitivamente felizes com a simplicidade da vida. Nesse rememorar um rio de lágrimas vaza em mim. A chuva tira o pó e lava a alma.

3 comentários:

  1. selena, vc tocou no ponto. cm consegue falar com tanta poesia!tbm sou apaixonada pela chuva e sempre que aq em bh chove me leva ao pasado. A chuva resga minhas lembranças, associo a chuva a musica e broa da vovó, e a carmina burana, pois meu pai tbm ouvia muita musica. No sul de minas chove bastante mais meu pai não deixava nem eu nem meus irmãos tomar banho por causa dos raios. eu ficava decepcionadamente frustrada.
    lindo o que escreveu, parabéns mais uma vez amiga.

    fabiana moraes

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  2. Selena,mermã acabei degelar meus olhos, a garganta doeu, o passado foliou com o gosto do fenômeno natural que chamamos chuva.Poxa, vc tocou com desvelo verossímil, lá no fundo.. me transportei para 30 anos atrás em silêncio..embargada, mas indenizada, ressarcida do prejuízo que o "brinquedo tempo" nos tira e nos dá com sua destreza imperativa.
    Sabe irmã, vc conseguiu incrementar a saudade que me sufoca e atrai do período invernoso que as chuvas provocam aos amantes dessa estação.
    Sou apaixonada incurável pela natureza..e quando o céu ameaça chover já estou em gozo; quando ela se precipita abuntante como o quebrar das ondas, fico sem palavras, ela é o realce!!!
    A chuva pra mim é irritantemente linda, fresca; enfeita minha rua e também a sua; apruma minha vida e aconchega mais ainda na varanda ou nos lençóis...
    A natureza chora quando chove e ainda articula a certeza da fecundação da semente em planta; de pirilampos no campo depois de caída e até da estrela que pode aparecer no outro dia..
    Ow, irmã, tão caro e belo é a possibilidade que voce dilata para eu e para quem ler sonhar...muito obrigada!
    Amo-te!
    Celina Cel.

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  3. Estou sem fôlego.. Ufa.. Que infância!

    bjs, saudades de você,
    Sandra

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Deixe o seu soninho que assim que o sol se levantar lerei com carinho.

Eu

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